segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Língua de sinais, cultura e identidade

Recorrendo aos fundamentos da teoria histórico-cultural, estarei olhando para a criança surda na qualidade de sujeito interativo, que se constitui nas relações sociais. Meu interesse está na análise do jogo intersubjetivo e não apenas na ação da criança. Esse interesse também não implica examinar apenas a atuação de outros diante da criança, sendo necessário enfatizar que, conforme lembra Góes (1991, p. 19), "o plano intersubjetivo não é o plano do 'outro', mas o da relação do sujeito com o outro".

Vygotsky (1981, 1984, 1989a, 1989b, 1993) concebe o homem como um ser sociocultural, afirmando que seu desenvolvimento se dá inicialmente no plano intersubjetivo (das relações sociais) e depois no plano intra-subjetivo (envolvendo o processo de internalização). No desenvolvimento assim concebido, a linguagem terá um papel fundamental, como mediadora das interações e da significação do mundo, ou ainda, a concepção de que o sujeito não significa o mundo para, a partir de então, representá-lo pela linguagem, mas, sim, que essa significação se constrói também pela própria linguagem.

Assim, para Vygotsky, a relação do homem com o mundo não é direta, mas mediada, e as ocorrências de mediação primeiramente vão emergir de outrem e depois vão orientar-se ao próprio sujeito. Portanto, "a dimensão significativa da mediação semiótica é também afirmada quanto à relação do homem consigo próprio" (Góes, 1994, p. 95) e essa relação não é direta, mas mediada pelo signo.

Esta afirmação leva à constatação de que o desenvolvimento do reconhecimento do Eu é um processo semiótico, que pressupõe a participação de outras pessoas (visto que a atividade com signos é necessariamente interpessoal). Desse modo, as relações sociais constituem-se por intermédio dos processos semióticos e a construção da identidade só poderá ser examinada considerando-se a dinâmica de significados e sentidos produzidos e interpretados no jogo interativo do sujeito com o outro (Góes, 1998).

Nesta proposição, quando falamos em indivíduo que interage com seu meio e absorve de maneira particular a cultura e os valores desse meio, estamos admitindo, necessariamente, o processo de internalização, que irá ocorrer no contexto das interações sociais, a partir da atividade mediada.

Dado o papel da linguagem como atividade constitutiva (Franchi, 1977), interessa-nos discutir a relação língua(gem)/identidade, entendendo que o sujeito se constitui como tal à medida que interage com os outros. Parafraseando Geraldi (1996), a língua e o sujeito constituem-se nos processos interativos. "Isto implica que não há um sujeito dado, pronto, que entra em interação, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas e nas falas dos outros" (idem, ibid., p. 19).

Ainda outros autores têm discutido a relação língua(gem) na construção da identidade, destacando-se que ela se constitui a partir da significação. Destacamos o trabalho de Orlandi (2001), que ao tratar da identidade lingüística vista no cotidiano da vida escolar releva que: 1) a identidade é um movimento na história; 2) ao significar, o sujeito significa-se; 3) a identidade não resulta de processos de aprendizagem, mas refere-se a posições que se constituem em processos de memória afetados pelo inconsciente e pela ideologia; 4) os processos de significação são constituídos por um deslize que se dá em redes de filiações históricas (cf. Pêcheux, 1983, apud Orlandi, 2001), sendo, desse modo, ao mesmo tempo, repetição e deslocamento.

Estaremos nos detendo nas afirmações 2 e 3, as quais nos interessam na perspectiva do sujeito surdo, especialmente aqueles filhos de pais ouvintes, levando em conta que o interlocutor privilegiado da criança surda é o próprio surdo.

Se o tema da linguagem na construção da identidade deve ser considerado no processo educacional de qualquer sujeito, mais significativo ele se torna na questão da surdez, pois em razão do uso da língua de sinais a criança surda filha de pais ouvintes, possivelmente, terá poucas oportunidades de usar significativamente essa língua. Em outras palavras, as possibilidades de aquisição da língua de sinais estarão restritas ao contato com a comunidade surda.

Essa aquisição poderá ocorrer tardiamente, na relação com iguais na escola especial ou em instituições para surdos ou ainda no contato com a comunidade surda (nas igrejas e nas associações de surdos). A criança surda filha de pais surdos (o que se constitui em uma pequena minoria) poderá adquirir a língua de sinais na interação com seus pares, análogo ao que ocorre com a criança ouvinte.

Se o vínculo entre a língua e a vida é tão forte como nos diz Bakhtin (1952-1953/1992), afirmando que por meio dos enunciados concretos a língua penetra na vida e vice-versa, o que acontecerá à criança surda filha de pais ouvintes, que costuma ter pouca participação nas práticas sociais mediadas pela língua de sinais?

Se ao significar nos significamos, isto é, sujeito e sentido configuram-se e é nisso que consistem os processos de identificação (Orlandi, 2001), como os surdos filhos de pais ouvintes estarão construindo a identidade surda se estes não possuem acesso à língua de sinais?

Se identidade não resulta de processos de aprendizagem, mas constitui-se em um movimento na história, como os surdos estão significando o mundo? Será que eles estão sendo inseridos nesse jogo entre a língua e a história que nos leva a produzir sentidos e, conseqüentemente, a nos constituirmos como sujeitos?

De acordo com Souza (1998), mesmo os surdos oralizados passam a fazer uma leitura de mundo somente a partir do uso da língua de sinais e, antes disso, suas possibilidades de participar ativamente com e na comunidade ouvinte são bastante reduzidas. Disso decorre uma identidade "fragmentada": o surdo que não domina a língua de sinais não se identifica com o grupo de surdos, tampouco se identifica com o mundo ouvinte, pois lhe falta vivência na língua majoritária que, de certa forma, sempre esteve pautada em exercícios e práticas artificiais (língua transformada em código).

Estas são algumas indagações que acredito serem relevantes para uma discussão entre pesquisadores da área da surdez com o objetivo de refletir sobre o papel do professor surdo e, conseqüentemente, da língua de sinais na construção da identidade surda.

Estaremos utilizando o conceito de identidade a partir da discussão de Hall (1997, apud Perlin, 1998), que considera três diferentes conceitos de identidade presentes na História: o iluminista, o sociológico e o da modernidade tardia ou pós-modernidade. O conceito de identidade pós-moderna é o que será utilizado neste trabalho. Perlin (1998, p. 52) reinterpreta Hall, tratando esse conceito como resultante de: "Identidades plurais, múltiplas; que se transformam, que não são fixas, imóveis estáticas ou permanentes, que podem até mesmo ser contraditórias". Algo em construção, em movimento e que empurra o sujeito em diferentes posições.

Com base nesta concepção de identidade consideraremos, então, identidade surda como sendo reprimida dentro da cultura ouvinte; ela está "sempre em proximidade, em situação de necessidade com o outro igual. O sujeito surdo nas suas múltiplas identidades sempre está em situação de necessidade diante da identidade surda" (Perlin, op. cit., p. 53).

Assim, para que a construção da identidade surda aconteça é essencial o encontro surdo-surdo, pois temos observado, nesses anos de interação professor ouvinte/professor surdo, que o interlocutor privilegiado da criança surda é o próprio surdo.

Faz-se necessário ressaltar que a surdez não é homogênea, ou seja, o grupo de surdos não é uniforme. Dentro do que denominamos surdos, fazem parte os surdos das classes populares, as mulheres surdas, os surdos negros, surdos de zona rural, entre outros (Skliar, 1998).

Assim, temos os surdos oralizados que não consideram necessária a oficialização da língua de sinais e, em contrapartida, os surdos filhos de pais surdos, usuários da língua brasileira de sinais (LIVRAS), e que não se consideram deficientes auditivos.

Enfim, podemos considerar a possibilidade de múltiplas identidades surdas, ou seja, elas são heterogêneas e apresentam diferentes facetas. Perlin (1998) vai além, classificando a identidade surda em cinco grupos: 1) identidade surda: aquela que cria um espaço cultural visual dentro de um espaço cultural diverso, ou seja, recria a cultura visual, reivindicando à História a alteridade surda; 2) identidades surdas híbridas: aquelas de surdos pós-locutivos, que nasceram ouvintes e se tornaram surdos; 3) identidades surdas de transição e formadas por surdos que viveram sob o domínio da cultura ouvinte (em geral, os surdos oralizados) e que posteriormente são inseridos na comunidade surda (processo de "des-ouvintização"3 da representação da identidade); 4) identidade surda incompleta: aquela dos surdos que vivem sob o domínio da cultura ouvinte e negam a identidade surda; 5) identidades surdas flutuantes, formadas por sujeitos surdos que reconhecem ou não sua subjetividade, mas que desprezam a cultura surda, não se comprometendo com a comunidade.

Dentro desta perspectiva a discussão sobre identidade surda não está desvinculada da cultura surda, a qual estaria relacionada ao processo de recriação de um espaço cultural visual. Na medida em que os surdos legitimam sua língua e sua comunidade, temos como decorrência dessa convivência minoritária o nascimento da cultura surda (arte, humor, teatro, poesia etc.). "É necessário manter uma posição intercultural mesmo que seja de riscos. A identidade surda se constrói dentro de uma cultura visual. Essa diferença precisa ser entendida não como uma construção isolada, mas como construção multicultural" (Perlin, op. cit.).

Zilda Maria Gesueli

Doutora em Psicologia da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora do Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação "Prof. Dr. Gabriel Porto" (CEPRE/FCM) da unicamp. E-mail: zgesueli@fcm.unicamp.br